Hoje igual a ontem

Naquele dia em particular, Joaquina já estava muito aborrecida. Melhor, estava danada. Acordou com os roncos da Gracinha, tão singela que ela é, ai tão queridinha, dizem, mas tão sem maneiras a dormir, desgraçada. Os lençóis branquinhos que Joaquina ia habitualmente buscar todos os dias pelas 11h15, ao estendal que as funcionárias engendraram no pátio, não estavam lá. Já só lá estavam, aquecidos pelo sol abrasador desse dia, lençóis rafeirosos e fronhas gastas e tingidas, manchadas por cores que não o branco. Era o que faltava. Estava arreliada porque já era quase meio dia e não tinha esse assunto resolvido, o dos malditos lençóis, sim, eram seus. Pior, ia almoçar sem saber deles. E já tinha perguntado a toda a gente. “Joaquina! Vai dar um recado à Isabelinha do Góis, se faz favor, pergunta-lhe se quer sopa de abóbora ou caldo verde”. Pronto, acabou-se-lhe a paciência. Agora estava enfurecida, tinha mais que fazer do que ensaiar-se moça de recados. Mais uma vez, e curso natural das coisas, nesse dia, não estava a correr como previsto. 

Joaquina conhece todos os cantos do lar, afinal é a sua casa há muitos anos, tantos que não sabe dizer quantos.  Moças d’um raio, que são chatas como tudo, pensou. Lá foi, deu o recado à Isabelinha, informou a Manela, que ainda assim não é das piores e deixa-lhe sempre a cama bem feita. Voltou. Pela quinta vez nesse dia foi à gaveta do seu quarto, podia alguma das funcionárias ter arrumado os lençóis. Nada. Ajustou o papel que forra o fundo da gaveta, abriu-a e fechou-a três vezes, deixou uma gretinha pequena para arejar. Encostou a porta do armário a três quartos, deu meia volta aos calcanhares e pensou em fazer uma pausa na busca e ir almoçar. Voltou atrás para ajeitar o lencinho de papel pousado na mesa de cabeceira. Nunca deixam nada direito, irra. Custa a andar, já lhe pesa a idade, há um dos pés que não avança com a mesma confiança que o outro. Foi quando nasceu o seu António, o único filho que a vida lhe deu, desgraçado que nunca mais apareceu nem ligou. Nunca ficou boa depois do parto, e que custoso foi ele, mas médicos só vê-los à distância ou na televisão, que perto nem pensar. Nunca quis ser operada e agora a magana da perna teima em não querer andar. 

Saiu do quarto e quase que foi atropelada pelo Constâncio, que desceu a rampa de cadeira de rodas a um ritmo de quem ia esfomeado para o almoço. Tal é esta moenga, onde estarão o raio dos lençóis? Perguntou à Marisa, à Teresa do Célsio, até à sonsa da Sónia, que se puder nem um bom dia lhe dá. Foi aquele dia no refeitório, a desastrada nem um copo de sumo lhe soube trazer, derramou-lho todo em cima e logo nesse dia, que tinha vestido a sua camisola de malha preferida, a que usava no Almoço de Natal. Ah, sim, era Natal, lembra-se bem agora. “Dona Joaquina, já lhe dissémos vezes sem conta que os lençóis brancos não são exclusivamente seus. É porque já foram postos, hoje dorme com outros.” Devem, pensou. Já vos conto uma história. Foi almoçar. 

Chegou à salinha, a azáfama do costume. Ele era os gritos estridentes da Maria Marafada, ele era o Zé Baldeado que teimava em levar o rádio dentro do bolso para ouvir a bola, ele era a Francisca Manuela que nem a comida tinha chegado à mesa já dizia que não comia, nem por cima do cadáver dela. Ele era a confusão do costume. Cambada de velhos, pensou. O almoço eram sopas de cação, feitas à paposeco, sem graça nenhuma. “Pensam que enganam agente, isto nem coentros tem!” grita-lhe, como sempre num volume altíssimo, a Luisinha Costureirinha. Desculpou-a porque era verdade. “Porquêra” de almoço. Saiu porta fora ainda antes da sobremesa. “Dona Joaquina, onde é que vai com essa pressa toda? Anda sempre numa fona!” Tenho que ir à casa banho, que estou aqui muito aflitinha, disse-lhe, com ar muito sofrido. Vou à cata da rolha, pensou para si. 

Meteu-se pelas portas do elevador, desceu, virou em dois corredores, era a altura perfeita para ir à lavandaria. Encontrou o pestilento do Manel dos Bois, mete sempre o bedelho em tudo. “Onde é que vais? Pensas que eu não te estou a ver? Vou já chamar a menina Marta e agora é que vais ver!”. Olhou em frente, era ali precisamente o quarto do chibo. Disse-lhe: “Olha, Manel, é bom que tomes conta da tua vida, vai lá ver que o teu andarilho desapareceu ali do quarto, vi que a Teresa do Célsio o levou corredor fora hoje de manhã. Deve tê-lo dado a alguém.” 

À primeira oportunidade, a assim que o desgraçado entrou no quarto, fechou-lhe a porta, trancou-a por fora e escapuliu-se pela lavandaria adentro. Ainda ouviu um “Puuuuuuu… d’um cab…..!” mas a voz ficou suspensa no ar. Olhou, olhou, não via nada, só as cuecas que a Josefina andava à pergunta há mais de um mês e toda a gente dizia que se tinham perdido. Mentirosas. Porra, aquela mulher usa grandes cuecas, pensou, ao mesmo tempo que bateu com os olhos numa pilha de lençolinhos brancos, engomados e dobrados. Ai tão lindos! Que perfeitinhos e cheirosos. O dia estava salvo. Estava já empoleirada numa cadeira, com as calças a descer pelo rabo, quando o raio do Manel dos Bois apareceu com a menina Marta, os dois com ar zangado, até parece que uma pessoa lhes tinha feito mal. Não perdes pela demora, velho d’um raio, pensou. Lá teve que descer da cadeira, com ajuda da menina Marta, dizendo-lhe que era o Alzheimer, ai, era o Alzheimer que a confundia e não é que achava que estava no quarto dela, e que o Manel era o marido, que queria sair para ir para a taberna?

Sabem muito, mas não sabem mais que eu pensou, pronta para, assim que a largassem da mão, ir roubar os lençóis à Isabelinha, essa sim que de nada se lembra, sabe lá ela se está deitada ou se já está com os anjinhos.

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